quarta-feira, 2 de julho de 2008

NO PRINCIÍPIO ERA O VERSO

Ele chegava sempre mais cedo naquelas noites. Barba bem feita, cavanhaque escanhoado, sempre com profundas olheiras, demonstrando noites insones e dias mal trabalhados. Mas vinha contente, feliz, esperançoso. Parava na soleira da porta e soltava sua saudação especial: “Que os deuses do Olimpo olhem por vocês”.

Ela chegava sempre na hora certa, todas as noites. Cabelo arrumado, vestido impecável e, sempre com o imenso sorriso espalhando harmonia e felicidade. Vinha sempre contente, alegre, bonita, ocupava sua mesa especial e nos brindava com sua saudação natural: “Boa noite a todos vocês”.

Todos se acomodavam para cinqüenta minutos da mais pura literatura. Naquela torrente de mensagens virávamos reis, poetas, musas e rainhas. O turbilhão lá fora não mais existia, apenas e tão somente palavras jogadas ao ar e levadas pela emoção.

Ela se enamorara da literatura, ele se apaixonara pela professora. Ela o via como o mais esforçado dos alunos, ela a imaginava como a mais importante das musas. Ela o considerava o melhor, ele a considerava a única.

Ele era o verso imperfeito, ela a literatura mais apurada. Juntos faziam os versos mais eloqüentes, ela rimava sua poesia com alegria, ele se torturava em amor e dor. Ela encerrava a aula com a certeza do dever cumprido, ele a recomeçava perambulando pelas madrugadas, estendendo a aula imaginária num amor impossível.

Ele era regato límpido e manso, ela a tormenta avassaladora. Ela umedecia as margens e gerava vida, ele rompia barreiras, inundava, matava, morria.

Tantas e tantas vezes ela o afastara com respeito e carinho, tantas e tantas vezes ele retornava com seu sonho inimaginável. Não havia outro sentimento nela que não fosse espalhar a literatura, o que mais gostava; não se sentia nele outro argumento que não fosse reviver seu amor impensável, o que lhe impulsionava a viver. Seus deuses do Olimpo estavam alheios ao seu sofrimento. Seus deuses do Olimpo estavam olhando para o outro lado. Mas ele não desistia, cada vez mais se esforçava em demonstrar o desejo imenso de romper os limites da aula e do razoável; cada vez mais ela se esmerava em estabelecer os padrões normais que deveriam guiar uma professora e um aluno.

Mas a literatura falava mais forte, e ela continuava a vê-lo como o melhor de todos, ele a via, cada vez mais, desgraçadamente, como a única a preencher os vazios que todos os instantes do dia lhe proporcionavam. Ela vibrava com a poesia, ele delirava, ela se soltava para a classe. Ele renascia só para ela.

E, no entanto, nunca tiveram outro relacionamento que não fosse o de professora e aluno.

Um dia, ou uma noite, sei lá, o esperado se fez presente.

Naquele instante, o inatingível dedo do destino comprimiu a arma do desatino e ele se foi.

No silencio daquele momento todos os poetas desfilaram para nó e sentimos forte a presença dela, triste, quieta, agente involuntária e inocente de um verso mal acabado, de um poema interrompido.

Faltava a rima final, a métrica se perdeu na irresponsabilidade de um sonho inútil. Dali em diante as aulas perderam o significado, já não enfeitiçavam mais, terminamos o ano, encerramos o ciclo, acabou.

Se foi insensato seu comportamento não me cabe julgar. Sei apenas que um amigo se misturou com as estrelas e hoje deve passear entre elas no sonho de uma vida cósmica que a efemeridade do espaço terreno não pode ofuscar.

Varias décadas se passaram, e toda vez que piso naquela calçada,dentre tantos amigos que lá deixei, lembro dos dois.

Aquele sobrado, no comecinho da Rua Augusta,ao lado do Bolonha, que um dia foi um colégio, que um dia virou pó, que virou estacionamento, que agora esta virando um “edifício arto” – meus respeitos Adoniran – me reconduz à lembrança aquele amor imperfeito, mas que plantou em mim um amor mais que perfeito pelos versos e reversos que a vida escreve.

Sonhos intensos vivi naquela calçada, por lá passo sempre e em todas as vezes uma pequenina e marota lágrima rola silenciosamente e faço com carinho, amor e saudade a mesma saudação: “Que os deuses do Olimpo, velem por teu sonho, amigo